terça-feira, 10 de maio de 2016

Espólios


espólio s.m. bens que ficaram por morte de qualquer pessoa; despojos de guerra; restos; espoliação; fardamento que as tropas entregam quando são licenciadas.( do Latim Spoliu- "despojo" )*

No sábado passado estivemos no meio de um espectáculo. Não havia palco nem plateia, de forma que nós, os espectadores, estávamos assim a modos que cara a cara com os actores. Se isto se tornar mais comum talvez deixe de me impactar, porém nesta estreia reconheço que me tocou bastante.
No teatro a energia é outra, é viva, é sempre diferente, pois flui de acordo com as variantes do momento. Está predisposta a imponderáveis, como se sujeita aos caprichos dos deuses. E por isso nos comove tanto. Imagine-se quando, em vez de palco, partilhamos o cenário verdadeiro com os actores, e andamos de um lado para o outro, entrando em casas de famílias reais, que descerram as suas portas, partilhando as suas vidas. Será de crer que nos toque ainda mais profundamente. 

Este espectáculo: "Espólios", é assim, dividido por seis casas, perto da baixa portuense; casas de família, que se abrem à Arte e a estranhos. Fosse isto apenas e já seria imenso. Porém, estas famílias partilham ainda os seus espólios, permitindo a construção de textos profundamente pessoais, que nós, espectadores, vivemos. Vivemos, porque ouvir e ver, é demasiado redutor. Nós cheiramos, tocamos, expressamos, e absorvemos, entrando na intimidade dos outros. O tipo de voyeurismo que me fascina; desde sempre me interrogo sobre o interior das casas antigas, quando passo por elas.
É impressionante como o nosso espólio diz tanto de nós!E cada casa, com os seus móveis, livros, quadros, pedras, conta uma história digna de ser narrada num livro, num filme, numa peça de teatro.
A experiência é-nos proporcionada pelos actores, que fazem essa ponte, num acto extraordinário de coragem e generosidade.  E de talento, porque foram realmente fantásticos.

Depois disso, fiquei a pensar nalgumas frases como: " nós somos o fazemos, não o que dizemos", "podemos não gostar dos objectos, mas guardamos-los por gostar das pessoas a quem pertenceram", " o tio e a tia comem sempre frente a frente, porque são um casal muito frontal", etc. E finalmente, dediquei-me ao meu espólio.

1-  A terrina da V.A. da avó Elisa ( que mesmo estalada e colada mantenho por ter sido dela)
2- Caixa de jóias musical, presente do meu marido, ainda namorado
3- Telegrama de parabéns, enviado pelo meu pai, pelos meus 15 anos
4- Bloco de pensamentos, reflexões, epifanias, poemas e sonhos
5- Caixa de flores secas ( uma flor de cada ramo que o meu marido me ofereceu, e mais tarde algumas dos meus filhos)
6- O meu livro preferido - Meditações de Marco Aurélio
7- Fotografia do meu pai
8- Caixa de fotos de família (algumas com fotos bizarras, como as de falecidos nos caixões!)
9- Bilhete dactilografado, escrito pela Letícia
10- Caixa do Snoopy com borracha em coração ( dos 14 aos 17 coleccionei) 
11- Cartas escritas pelas minhas melhores amigas na adolescência
12- A fotografia preferida dos meus filhos

Não é fácil, pois a oferta é imensa, mas é um exercício que vale a pena fazer. Uma amostra de espólio que já diz tanto de mim. 

Teatro Nacional S.João
Teatro do Vestido / Teatro Carlos Alberto
Cocriação e interpretação:
Ainhoa Vidal
Estevão Antunes
Miguel Bonneville
Rosa Quiroga
Rosinda Costa
Sara Barros Leitão
Catarina Carreira

Só até ao próximo domingo. Porque as coisas boas não duram.        

* Dicionário da Língua portuguesa, Porto Editora, 8ª edição